Dr. Alberto Eustáquio Caldeira de Melo – Cardiologia Clínica
Introdução
A Insuficiência Mitral (IM) é caracterizada pela coaptação imperfeita dos folhetos mitrais durante o período de ejeção do ventrículo esquerdo (VE), com consequente regurgitação sanguínea para o átrio esquerdo (AE). Tal quadro pode acontecer em função de alterações em qualquer um dos componentes da valva mitral, folhetos , anel ou aparato subvalvar. As repercussões clínicas e hemodinâmicas dependem da etiologia, grau e duração da IM.
Etiologia
No nosso meio a causa mais comum de IM continua sendo a febre reumática. O prolapso valvar mitral, a degeneração mixomatosa e a dilatação do anel mitral por cardiomiopatias dilatadas ou alterações isquêmicas também são causas freqüentes de IM.
– Etiologia Primária ou orgânica (resultante de deformidade estrutural valvar): Prolapso Valvar Mitral, endocardite infecciosa, febre reumática, degeneração mixomatosa, doença vascular do colágeno, deformidades congênitas
– Etiologia Secundária ou funcional (desencadeada por outro acometimento cardíaco): Isquemia Miocárdica, cardiomiopatia hipertrófica, cardiomiopatia dilatada, disfunção ventricular esquerda tipo sistólica, rotura de cordoalha.
Fisiopatologia
A Insuficiência Mitral desencadeia uma sobrecarga de volume tanto para o átrio esquerdo, quanto para o ventrículo esquerdo. Nessa condição, o AE recebe, além do retorno venoso das veias pulmonares, o fluxo regurgitante do VE. Enquanto que o ventrículo esquerdo recebe na diástole o volume que foi ejetado para o AE na sístole, adicionado ao retorno venoso. Enquanto na IAo ocorre sobrecarga de volume-pressão na IM ocorre sobrecarga de volume, pois o AE é uma câmara de baixa pressão.
– Insuficiência Mitral Crônica
Fase Compensada: Devido ao lento processo de instalação da IM Crônica, o coração desenvolve mecanismos compensatórios como:
.Dilatação do AE, sem alterar a espessura da sua parede;
.Dilatação e hipertrofia excêntrica do VE;
.Aumento do volume diastólico final, permitindo aumento do volume sistólico e do débito cardíaco (tal elevação de volume, no entanto, aumenta o diâmetro do anel mitral, o que por sua vez, eleva o grau de regurgitação, gerando um círculo vicioso);
.Aumento na pré-carga com pós-carga normal ou diminuída, fazendo com que haja valores da fração de ejeção acima do normal.
Fase Descompensada: a IM Crônica, após longo tempo de fase assintomática, pode desencadear lesão miocárdica ventricular, tornando esta câmara incapaz de manter um volume sistólico adequado. Essa fase pode ou não apresentar sintomas, os quais são decorrentes do aumento da pressão de enchimento ventricular e da pressão no AE. Tais alterações podem evoluir com uma síndrome congestiva pulmonar e diminuição do débito cardíaco.
– Insuficiência Mitral Aguda
Ocorre de maneira súbita e, assim, não há tempo para o desenvolvimento de mecanismos adaptativos suficientes para compensar o aumento abrupto de volume regurgitante, causando elevação da pressão intra-atrial e intraventricular. Com isso, ocorre diminuição do débito cardíaco e congestão pulmonar, com conseqüente hipertensão veno-capilar pulmonar. As principais causas são infarto agudo do miocárdio, endocardite infecciosa, lúpus eritematoso disseminado, trauma torácico fechado e ruptura de cordoalha.
Achados Clínicos
-Sinais e Sintomas:
. O paciente pode estar assintomático ou apresentar dispneia, ortopneia, dispneia paroxística noturna, astenia, fadiga e hipertensão pulmonar (nos casos mais graves)
. Na IM Aguda pode ocorrer edema agudo de pulmão e/ou choque cardiogênico
-Exame físico:
. Ictus Cordis: impulsivo, deslocado para a esquerda da linha hemiclavicular E, e para baixo do 5º espaço intercostal.
. Perfusão periférica pode estar diminuída nos casos de IM Aguda
. Pode-se perceber frêmito holossistólico no ápice do coração
. Ausculta:
B1 = normo ou hipofonética (ou ainda hiperfonética ,quando o IM associa-se com Estenose Aórtica) B2 = pode estar desdobrada devido à formação precoce do componente aórtico (em função do baixo debito sistólico)
B3 = pode estar presente, desencadeada pelo aumento da velocidade do fluxo sanguíneo pelo orifício mitral durante a fase de enchimento rápido
Sopro regurgitativo:
– Holossistólico (ocorre durante toda a sístole): ruído de alta freqüência, melhor audível no foco mitral. Se o acometimento ocorrer no folheto anterior, a irradiação será para a região axilar esquerda ,base da coluna ou para a cabeça; caso ocorra no folheto posterior, a irradiação será para a base do coração
–Protossistólico (sopro desaparece no final da sístole): casos de IM Aguda
-Telessistólico (regurgitação começa no fim da sístole): quadros de prolapso da valva mitral e disfunção do músculo papilar.
– IM silenciosa: ausência de sopro devido dilatação importante de VE.
* Diferenciando os sopros sistólicos:
– O sopro sistólico da Estenose Aórtica apresenta caráter crescendo-decrescendo, localizado na base do coração e não recobre B1, já que é do tipo ejetivo. – O sopro da comunicação interventricular localiza-se na borda esternal esquerda, sem irradiar-se para a axila. – Manobras que diminuem o sopro da IM: Valsalva, ficar em pé subitamente e inalar nitrito de amila – Manobras que aumentam o sopro da IM: Posição de cócoras, exercício isométrico(enquanto que na estenose aórtica e cardiomiopatia obstrutiva não há aumento do sopro) |
Exames complementares
– Eletrocardiograma:
.Achados mais freqüentes são aumento do AE e fibrilação atrial
.Pode-se apresentar sobrecarga de VE em 30% dos casos
.Pode haver sinais de hipertrofia ventricular direita em consequência da hipertensão pulmonar em até 15% dos casos
.Na IM de etiologia isquêmica é possível encontrar sinais de insuficiência coronariana
-Radiografia do tórax:
. Aumento das câmaras esquerdas
. Achados de grandes aumentos de AE, em geral, NÃO se associam a sinais de hipertensão pulmonar
. IM Aguda pode apresentar sinais de congestão pulmonar sem aumento das câmaras.
-Ecocardiograma:
. Permite a avaliação da morfologia da valva mitral, possibilitando o diagnóstico da IM, assim como a determinação da sua gravidade , etiologia e consequências hemodinâmicas
.Indicação Eco transtorácico:
– Diagnóstico, avaliação e quantificação do grau da IM e da função ventricular em pacientes com suspeita de IM
– Observação anual ou semestral da função do VE em pacientes assintomáticos com IM moderada e grave
– Reavaliação de pacientes com mudanças de sinais e sintomas
– Após intervenção cirúrgica da valva mitral
– Avaliação das alterações hemodinâmicas e adaptação ventricular durante a gravidez
– Avaliação periódica em pacientes assintomáticos, com IM discreta
.Indicação Eco transesofágico:
– Perioperatório ou intra-operatório em pacientes com indicação de correção cirúrgica da IM
– Avaliação de pacientes nos quais o Eco transtorácico foi inconclusivo
– Pacientes com IM importante, assintomáticos, para analisar indicação cirúrgica conservadora quando o ECODOTT(transtorácico) não mostra resultados satisfatórios.
Quantificação ecocardiográfica da Insuficiência valvar mitral | |||
Discreta Moderada Importante | |||
Área do jato regurgitante com Doppler colorido(cm2) | Área pequena,jato central
(<4cm2 ou <20% da área do átrio esqurerdo) |
20% a 40% da área do átrio esquerdo | >40% da ára do átrio esquerdo |
Vena contracta(cm) | <0,3 | 0,3-0,69 | ≥0,7 |
Volume regurginte(mL/batimento) | <30 | 30-59 | ≥ 60 |
Fração regurgitante(%) | <30 | 30-49 | ≥ 50 |
Área do orifício regurgitante(cm2) | <0,2 | 0,2-0,39 | ≥0,4 |
Parâmetros adicionais | |||
Dimensão do átrio esquerdo | – | — | Aumentada |
Dimensão do ventrículo esquerdo | – | Aumentada |
-Teste de esforço:
Exame bem indicado para avaliação de sintomas mascarados pela historia clinica.
-Cateterismo
De acordo com a SBC, é indicado:
. Ventriculografia esquerda e medidas hemodinâmicas quando os testes não invasivos são inconclusivos em relação à gravidade da IM ou função do VE havendo discrepância entre achados clínicos e laboratoriais
. Estudo hemodinâmico quando a pressão da artéria pulmonar é desproporcional a gravidade do refluxo mitral em testes não invasivos
. Cineangiocoronariografia antes do tratamento cirúrgico da valva mitral em pacientes com fatores de risco para doença arterial coronariana
Tratamento Farmacológico
Profilaxia para Febre Reumática e Endocardite Infecciosa:
Mesmo nos pacientes assintomáticos, mas com IM crônica, de etiologia reumática, a profilaxia para FR deve ser feita até os 40 anos de idade e caso o paciente faça parte de população de risco (adolescentes, professores, funcionários de creches, profissionais de saúde) por toda a vida profissional. A orientação quanto higiene bucal é fundamental. Quanto à profilaxia da EI a conduta é controversa, mas no Brasil a maioria dos serviços de referência mantém a profilaxia nos portadores de IM moderada a grave. Ver profilaxia da FR no final do capítulo e profilaxia da EI no seu respectivo capítulo.
– IM Aguda
- Diuréticos:
– Furosemida
Dose inicial: 0,5 a 1 mg/kg IV (1 ampola = 2 ml = 20 mgs)
P.ex: Paciente com 60 kgs: dose inicial – 1,5 a 3 amps – EV – em
Infusão não superior a 20 mgs/min.
Inicio da venodilatação < 5 min. Diurese em torno de 5 min.
Pico de ação: 30 min. Meia-vida: 30 a 60 minutos.
Duração: venodilatação < 2 horas. Diurese em torno de 60 min
- Vasodilatadores:
.Nitroglicerina
Observação: não usar em PAS < 90 mmHg, bradi ou taquicardia pois pode desencadear palpitações e síncope. Não usar em hipovolemia não corrigida e IAM de VD
Apresentação: ampolas de 5 ml (25 mgs) ou 10 ml (50 mgs)
Sempre fazer através de bomba de infusão continua (BIC) e com monitorização de PA/FC/Sp02
Em termos práticos: 01 amp de 5 ml + SGI 5% 245 ml – EV(endovenoso) – BIC – iniciar com 10 ml/h e observar na beira do leito de 3 em 3 a no máximo 5 em 5 minutos e adequar a dosagem à resposta.
- Inotrópicos: em quadros de baixo débito cardíaco e hipotensão arterial sistêmica
.Dobutamina
Apresentação: 250 mgs em 20 ml
Sempre com BIC e monitorização continua.
Em termos práticos: 01 ampola + SF 0,9% 230 ml – EV – BIC – iniciar com 10
ml/h e observar reações clinicas (aumento da FC e da PA). Inicio da ação: 1 a 2
minutos. Corrija a hipovolemia antes de iniciar a medicação.
- Balão intra-aórtico: em caso de choque cardiogênico
– IM Crônica
Nos casos assintomáticos não há necessidade de tratamento farmacológico. Uma preocupação é que o tratamento medicamentoso possa mascarar a sintomatologia e postergar de maneira nociva a indicação cirúrgica. Desta forma em IM crônica o tratamento medicamentoso visa exclusivamente a melhoria da qualidade de vida do paciente enquanto aguarda o tratamento cirúrgico. Em caso de sintomatologia, como ponte para cirurgia, indica-se:
- Diuréticos: IM crônica importante, sintomática e com sinais de congestão
.Furosemida – 20 a 40mg 24/24 hs ou mais conforme a condição clínica do paciente na dose máxima diária de 320 mgs/dia. Indicar apenas em caso de congestão pulmonar ou periférica antes do procedimento cirúrgico.
- Vasodilatadores:
Até o momento não existem estudos que comprovem que essa classe de medicamentos promovam benefícios à pacientes com IM, diminuindo o grau de regurgitamento ou prevenindo a disfunção do VE. Exceto em pacientes com HAS ou IC, não devem ser prescritos em pacientes assintomáticos, pacientes com IM grave ou sintomáticos com FEVE normal.
.I-ECA: captopril 12,5mg – 1 comprimido VO 8/8 h (aumentar a dose conforme tolerância e determinação clinica)
Quadros de IM associada à Fibrilação Atrial (permanente ou paroxística) recomenda-se o controle da FC sem a necessidade de reversão para o ritmo sinusal. A frequência cardíaca, nesses casos, deve ser controlada com bloqueadores de canais de cálcio do tipo não diidropiridínicos (diltiazem, verapamil), digoxina, amiodarona ou betabloqueadores. A indicação correta é a cirurgia e o uso de anticoagulantes e controle da FC é paliativo:
- Anticoagulantes ( RNI – alvo entre 2,0 e 3,0):
. Marevam – iniciar com 5mg – 1 x dia às 18 hs ou iniciar com metade desta dose em pacientes acima dos 60 anos
Repetir exame RNI de 15 em 15 dias. Se paciente internado, repetir todos os dias
- Betabloqueadores:
. Controle de frequência ventricular na FA de alta reposta associada à IM crônica importante
. Na presença de insuficiência cardíaca: carvedilol, bisoprolol, nebivolol ou metoprolol.
A NECESSIDADE DE USO DOS MEDICAMENTOS ACIMA OU OUTROS NÃO RELACIONADOS E SUAS DOSAGENS DEPENDEM DE UMA AVALIAÇÃO CASO A CASO. IMPORTANTE FRISAR TAMBÉM QUE O TRATAMENTO CLÍNICO É SINTOMÁTICO, MELHORA A QUALIDADE DE VIDA, MAS NÃO SE CONTRAPÕE À INDICAÇÃO CIRURGICA.
Tratamento Cirúrgico
Insuficiência valvar por ruptura de músculos papilares implica em tratamento cirúrgico de urgência logo que a estabilização hemodinâmica seja estabelecida usando balão intra – aórtico e vasodilatadores. Cirurgia de revascularização miocárdica e troca valvar podem ser necessárias em muitos casos.
A correção cirúrgica da Insuficiência Mitral pode ser realizada por 3 maneiras : . Reconstrução por plástica . Substituição da valva por prótese com preservação parcial ou total das estruturas subvalvares . Substituição por prótese com remoção do aparelho valvar
A plástica apresenta varias vantagens em relação à troca valvar, dentre elas a preservação da continuidade entre o anel mitral e os músculos papilares, ausência da necessidade de anticoagulação e menor morbidade perioperatória. Quando a continuidade ânulo-papilar é mantida a fração de ejeção permanece estável ou melhora, ao contrario de uma redução de aproximadamente 10% da ejeção quando não se preserva esta estrutura. Alem disso, a plástica bem indicada pode trazer uma sobrevida de 80 a 90% dos pacientes em 10 anos. Em muitos casos a plástica não é possível devido a calcificação do aparato valvar, principalmente na etiologia reumática que continua sendo a mais comum em nosso país.
Indicações Cirúrgicas segundo a SBC:
Classe I(Recomendável)
.Pacientes com IM crônica importante, sintomáticos (CF II, III ou IV), com FE > 30% e DsVE < 55mm.
.Pacientes com IM crônica importante, assintomáticos, com FE entre 30% e 60% e DsVE ≥ 40mm.
Classe IIa (Razoável)
.Plástica da valva mitral em pacientes com IM crônica por prolapso, importante, assintomáticos, com FE ≥ 60% e DsVE < 40mm
.Pacientes com IM crônica importante, assintomáticos, com função ventricular esquerda preservada e fibrilação atrial de início recente e/ou com Hipertensão Pulmonar (PSAP > 50mmHg em repouso ou > 60mmHg com exercício)
Classe IIb (Pode ser considerada)
.Pacientes com IM crônica importante devido à disfunção ventricular grave (FE < 30%) que apresentem sintomas persistentes (CF III ou IV) a despeito de tratamento otimizado para insuficiência cardíaca, incluindo estimulação com marcapasso biventricular.
. Plástica da valva mitral em pacientes com IM crônica reumática, importante, assintomáticos, com FE ≥ 60% e DsVE < 40mm
Classe III (Não recomendável)
.Pacientes com IM crônica importante, assintomáticos, com FE ≥ 60% e DsVE < 40mm, na ausência de HP ou fibrilação atrial de início recente, nos quais existe dúvida sobre a possibilidade de realização de plástica mitral.
- Pacientes sintomáticos sem disfunção ventricular
. Pacientes com ICC associado à IM grave, mesmo sem disfunção do VE são indicados ao procedimento cirúrgico, assim como na presença de sintomas leves, principalmente quando a possibilidade de realização de plastia valvar é possível, que depende da anatomia valvar e da experiência do cirurgião.
- Pacientes assintomáticos e sintomáticos com disfunção ventricular
. Consenso atual que a cirurgia sobre a valva mitral está indicada nos pacientes assintomáticos ou sintomáticos quando surge indicadores ecocardiográficos de disfunção ventricular (FE < 0,60 e/ou DSVE > 40 mm) para prevenir deterioração ventricular futura aumentando a longevidade;
. Diferente da doença valvar aórtica, a fração de ejeção não deve ser permitida cair até o limite inferior da normalidade para indicação cirúrgica, pois esse determinante reflete diretamente na sobrevida pós-operatória.
Fibrilação atrial
. O desenvolvimento de fibrilação atrial (FA) é fator de risco para o aparecimento de ICC e morte, sendo fator preditor independente de diminuição de sobrevida pós-operatória;
. Fatores que predispõem à persistência da FA após cirurgia da valva mitral é presença de FA após 1 ano da cirurgia e átrio esquerdo > 50 mm;
. Associação de IM com indicação cirúrgica e FA crônica fixa ou recorrente, deve ser considerada a cirurgia para correção da arritmia através de radiofrequência, ultra-som ou eletro cautério, com sucesso de 70 a 80% de retorno ao ritmo sinusal.
- Considerações especiais em idosos
. Em geral a mortalidade operatória aumenta e a sobrevida diminui após os 75 anos, especialmente se a troca valvar deve ser realizada concomitante à CRVM ou cirurgia em outras valvas. A mortalidade operatória varia de 14 a 20 %, principalmente se associado à outras cirurgias;
. Devido a isso, pacientes assintomáticos ou oligossintomáticos devem ser tratados com medicamentos.